19 de maio de 2011

A CRISE NO ZIMBABWE NA VISAO DE PAULO MUXANGA

Zimbabwe: dois anos do Acordo Político Global:
“Um parto doloroso para um nado morto”

Paulo Muxanga

Outra vez Zimbabwe. Desta vez o pretexto é relativo aos dois anos da implementação do Acordo Político Global (APG). Com este texto, pretendo lançar um olhar panorâmico aos contornos do mesmo e seu contributo na consolidação da democracia no Zimbabwe. Abraham Lincoln , num discurso, referiu-se à democracia como o “governo do povo, pelo povo, para o povo”. Com isto, pretendeu ele dizer que o poder de governar emana do povo, que se governa a si mesmo, buscando satisfazer seus próprios interesses. Entretanto, o APG reflecte justamente o oposto da tese de Lincoln, revelando-se uma verdadeira negação da vontade popular, expressa através do voto. Aliás, esta é uma tendência que parece ganhar forma em África, como o demonstram os exemplos do Quénia, Madagáscar e o próprio Zimbabwe.

As últimas eleições zimbabweanas, segundo variadas fontes, incluindo a Human Rights Watch, deixaram muito a desejar em termos de pacifismo, liberdade e transparência, com relatos de registo de graves indícios de fraude, também testemunhados por observadores africanos. Os dados de que dispomos, indicam um saldo que ronda os 200 mortos, em consequência da violência eleitoral de 2008, da qual nem o líder da maior força da oposição, Morgan Tsvangirai, presidente do Movimento para a Mudança Democrática (MDC), escapou. Este foi por várias vezes detido, espancado e privado de suas liberdades fundamentais, como a da movimentação, o que acabou por contribuir fortemente para a sua decisão de retirar-se da corrida à segunda volta das presidenciais, deixando o caminho livre para a vitória tranquila do presidente Robert Mugabe.

Os acontecimentos ocorridos ao longo do processo eleitoral zimbabweano de 2008 são reveladores de um desrespeito grave às normas democráticas internacionais, destacando-se, entre outras, a Carta Africana sobre Democracia, Eleições e Governação, no que se refere ao respeito dos direitos humanos e dos princípios democráticos, à realização regular de eleições, transparentes, livres e justas, à separação dos poderes, à participação efectiva dos cidadãos nos processos democráticos e de desenvolvimento, à transparência e justiça na gestão dos negócios públicos e, os Princípios e linhas gerais da SADC que regem eleições democráticas, no que tange a plena participação dos cidadãos no processo político; liberdade de associação; tolerância política; igualdade de oportunidades para todos os partidos políticos, em termos de acesso aos media estatais; igualdade de oportunidades para exercer o direito de voto e de ser votado; independência do sistema Judiciário e imparcialidade das instituições eleitorais; aceitação e respeito dos resultados das eleições pelos partidos políticos, proclamados pelas Autoridades Eleitorais Nacionais como tendo sido livres e justas, em conformidade com a lei do país.
Entretanto, perante estes factos, os líderes da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), no lugar de fazerem cumprir os instrumentos por eles adoptados, condenando as irregularidades e não reconhecendo os resultados saídos desse processo, promoveram, apoiaram e, de certa forma, impuseram, como solução do problema, a adopção de um governo de partilha, no entanto, desequilibrada, materializado no Acordo Político Global (APG), em vigor há pouco mais de dois anos. Esta solução resultou de um longo processo, cujo desfecho não foi nada mais do que a legitimação de todo o processo eleitoral, que tinha sido contestado por quase todos os quadrantes, nacionais e internacionais, incluindo a própria SADC, embora o tivesse feito de forma muito tímida e sem convicção. Portanto, ao promover esta solução, a SADC, não só não resolveu o problema do Zimbabwe, como apadrinhou a amputação dos princípios do Estado de Direito Democrático, por si defendidos e plasmados em vários instrumentos africanos, alguns dos quais já mencionados.
Por outro lado, o APG, para além ser um documento ambíguo, em termos de mecanismos de garantia de sua implementação, o que o torna ineficaz, conferiu poderes excessivos à figura do Presidente da República, esvaziando, em larga medida, os poderes dos outros membros do governo, particularmente do Primeiro-Ministro e Vice-Primeiro-Ministro, tornando-os em meras figuras decorativas, conforme vem sendo demonstrado pelas sucessivas decisões unilaterais emanadas pelo Presidente da República, com destaque para as últimas nomeações de 10 governadores provinciais, os quais o Primeiro-Ministro diz não reconhecer por serem inconstitucionais, não tendo, no entanto, mecanismos legais a que possa recorrer para impugná-las. Mas também, a ineficácia deste acordo permite que uma das partes, no caso o Presidente da República, decida pelo fim do mesmo, e ainda convocar eleições, tudo feito a margem dos entendimentos obtidos entre as partes contratantes. Uma vez mais, a semelhança do que sucedeu anteriormente, a SADC, na voz do seu mandatário para a questão do Zimbabwe, o Presidente Sul Africano, Jacob Zuma, apoia e encoraja a ideia da realização de eleições em 2011, argumentando que esta seria uma das vias de acabar com os constantes impasses no governo inclusivo, saído do APG. Entretanto, se o Presidente Zimbabweano, Robert Mugabe, e o seu Primeiro-Ministro, Morgan Tsvangirai, se dizem prontos para o escrutínio, importa referir que há várias correntes no País que entendem que, em termos políticos, os pouco mais de dois anos do APG, não trouxeram grandes alterações, mantendo-se, em grande medida, os factores de violência e intimidação que conduziram o processo eleitoral de 2008 ao desfecho caótico em que se viu mergulhado. Enquanto uns argumentam que a realização de eleições, nas actuais condições, só beneficiará a ZANU-PF e seu presidente, Robert Mugabe, outros defendem que realizar eleições, num futuro imediato, poderia colocar riscos aos sinais evidentes de melhoria e estabilização da situação económica, que registou um crescimento de 5% o ano passado, algo que não sucedia desde 1998.
Posto isto, a conclusão que se pode tirar é de que a SADC precisa de, urgentemente, mudar a sua perspectiva em relação à questão zimbabweana, procurando corrigir os erros que conduziram àquilo que designamos de “nado morto”, o AGP, por todas as fragilidades acima apresentadas, e, simultaneamente, centrar as suas energias no fortalecimento do Estado de Direito Democrático e respeito pelos direitos fundamentais do povo zimbabweano, o que passa também por reavaliar o seu apoio à eventual realização de eleições gerais em 2011, no Zimbabwe.

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