1 de novembro de 2011

HUMAN RIGHTS IN AFRICA: A HISTORIC PERSPECTIVE

DIREITOS HUMANOS EM AFRICA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Por Constâncio Nguja
 
Especialista em Política Africana

Introdução
Escrevo este artigo uma semana após a morte de Muhammar Qadafi, ex-líder da Líbia. Segundo o mundo ocidental, trata-se de um tirano, ditador e grande violador dos direitos humanos. E como é que este mesmo homem era visto pelo seu povo? Como era ele visto pelo povo africano em geral? E como outros políticos como Robert Mugabe são vistos?
Como podemos avaliar e encarar a questão dos direitos humanos em África? É em torno destas questões que o presente artigo visa reflectir. O artigo surge da necessidade de reflectir sobre a passagem dos 30 anos após a adopção da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (a 21 de Outubro). O mesmo será baseado na revisão bibliográfica, seguida da experiência passada em canais de informação.

O Conceito de Direitos Humanos

Desde a adopção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, tem havido uma preocupação constante para a proteção de certos direitos básicos, que um homem tem de desfrutar pelo mero facto da sua condição de ser humano. O conceito de direito humano é tão antigo quanto a sociedade humana. Este conceito evoluiu e foi, em grande medida, um instrumento de revolta contra os governos tiranos.
Hoje, o conceito de direitos humanos está intimamente ligado ao "Estado" ou uma sociedade organizada com um governo, e refere-se à relação entre o indivíduo e o Estado ou seu governo, seus direitos de participação política, as liberdades de que o indivíduo deve desfrutar e suas reivindicações sobre o Estado no que tange à satisfação das necessidades básicas da vida, sejam elas ligadas à saúde, educação, entre outras. Em outras palavras, os Estados e Governos têm uma responsabilidade primordial de proteger, reconhecer, observar e expandir as fronteiras dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos outros seres humanos sob seu território e jurisdição. Se qualquer Estado ou Governo não cumpre com essa responsabilidade, ele pode ser obrigado a perder a sua legitimidade e o direito de comandar a obediência e lealdade dos cidadãos.

Hoje em dia contamos com ideias internacionalmente aceites sobre os direitos – sejam de natureza civil, política, social ou económico-ambientais. Os Estados são obrigados a aderir a esses regimes de direitos, convertidos nos seus deveres de respeitar, proteger, promover e satisfazê-los em relação aos seus povos.

Breve histórico da protecção dos direitos humanos em África
A) Os direitos humanos e dos povos nos períodos pré-colonial e colonial (Por José H. Fischel de Andrade, in http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/sistemaafricano.htm)
A África durante seu período pré-colonial era composta de cidades independentes e principados, reinos e impérios, sendo suas relações baseadas na soberania, independência e cooperação. Apesar de não ser homogêneos, nem cultural nem politicamente, havia uma série de características comuns que, ainda hoje, se diferenciam de forma destacada dos padrões ocidentais.
Essas características podem ser resumidas, grosso modo, no conceito de ideal comunitário. Este se distingue do mundo ocidental em função de três pontos cruciais: a) as pessoas não se vêem como indivíduos, nem se preocupam com seus direitos individuais, sendo a cidadania atingida em razão do papel da pessoa na comunidade, estando todas preocupadas com o grupo, com os direitos étnico-culturais; b) as decisões políticas são tomadas através de consenso comunitário, devendo o chefe consultar os mais velhos, que representam o povo – destaca-se a possibilidade de “oposição leal”, isto é, os leais fazem parte do grupo e os oponentes, por definição, não são leais; c) a riqueza é automaticamente redistribuída, não havendo conceito de propriedade privada – o que faz com que o homem rico seja respeitado somente se ele divide seus pertences com seus familiares e príncipes de seu grupo étnico-social. Nota-se, portanto, que o senso comunitário tinha como contrapeso dos direitos e privilégios certos deveres, que poderiam ou não se reflectir na violação de outros direitos.
Outros factores de extrema importância em qualquer organização sócio-política pré-colonial africana eram a família e a vila, ou a tribo. A terra contava pouco e por essa razão, para os Estados africanos, fronteiras eram algo móvel, flexível, indefinido (...)
A dominação e influência estrangeiras – consolidadas através da colonização – tiveram impacto imensurável no continente africano. Um ex-Ministro da Educação dos Camarões, e conceituado jurista, define bem algumas das consequências do período colonial: a participação do continente na vida internacional foi reduzida abruptamente, extinguindo-se praticamente o desenvolvimento de ideias, conceitos e princípios políticos; o conceito tradicional de que a vida humana era sagrada foi ridicularizado; o novo sistema social mostrou uma face diferente, distante do indivíduo e do espírito familiar; o respeito pela dignidade humana passou a significar respeito pelo homem branco, posto que os valores dominantes passaram a ser ocidentais; foi, por fim, o término da crença nos valores humanos.
O período colonial significou a diminuição, senão a extinção por completo, do exercício dos direitos humanos. Não havia respeito nem aos direitos civis e políticos, nem tão pouco aos económicos, sociais e culturais. Não houve, no geral, preocupação por parte dos Estados Colonizadores quanto ao desenvolvimento econômico de suas colónias – pelo menos até o início da segunda Guerra, quando as exigências de estado de beligerância forçaram uma consideração mais racional de seus recursos.
Não obstante, apesar de as potências colonizadoras não estarem preocupadas em conceder aos cidadãos das terras colonizadas os mesmos direitos facilitados aos de seus territórios, e até mesmo levando-se em consideração todas as atrocidades cometidas, não se pode negar certos aspectos positivos que tiveram lugar durante a época da colonização. Dentre eles, pode-se mencionar a eliminação de diversos conflitos inter-étnicos; a abolição, onde existia, da escravidão doméstica africana.
Após a Segunda Guerra Mundial, a situação política no continente africano mudou consideravelmente, haja vista a aquisição da independência de seus Estados – processo ocorrido, principalmente, durante as décadas de 60 e 70. A influência destes Estados deu oportunidade ao estabelecimento de uma organização regional nos moldes já existentes em outros continentes; e que, como suas análogas, teve papel fundamental no desenvolvimento da protecção dos direitos humanos – apesar da diversidade, muitas vezes, de objectivos e métodos utilizados.
B) Os Direitos Humanos e dos Povos face à independência dos Estados africanos e o papel da Organização da Unidade Africana na sua promoção e protecção até meados dos anos 70.
Quando a Carta das Nações Unidas foi adoptada e aberta à assinatura, em 1945, somente quatro Estados africanos eram independentes: o Egipto, a Libéria, a Etiópia e a África do Sul. À medida que os novos Estados africanos adquiriam sua independência, era natural que fossem manifestando sua adesão a todos os instrumentos globais – não só para afirmarem sua posição de Estados soberanos, como também para se inserirem no cenário mundial. Entretanto, existia uma certa artificialidade quanto ao real grau de comprometimento destes novos Estados com certos instrumentos concertados no plano global. Exemplo pertinente é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, à qual os Estados Africanos sempre manifestaram sua adesão, tendo-a respeitado raramente.
Os motivos que ensejam este comportamento são de fundamentação ora histórico-política, ora económica. A alegação sempre feita é a de que os Estados africanos não estavam presentes quando da redação destes documentos. Consequentemente, faz com que estes não tenham sua legitimidade global que têm como resultado a não observância destes instrumentos, como o desmantelamento dos sistemas políticos multipartidários herdados da época colonial e a sua substituição por sistemas monopartidários ou regidos por ditaduras militares; a impossibilidade, em função dos sistemas políticos mencionados, do respeito aos direitos civis e políticos, tais como liberdade de associação, de imprensa, eleições regulares, direito à vida, propriedade, etc.; violações massivas de direitos em razão de golpes de estado e de situações de emergência; não reconhecimento de realidades étnicas e religiosas distintas da adoptada oficialmente, só para mencionar alguns.
Depararam, pois, os Estados africanos, no período pós-guerra, com duas realidade difíceis de serem conciliadas; a mundial, de (re)construção, de (re)estruturação de esforços com vistas, inter alia, à protecção, nos mais diversos aspectos, dos direitos humanos; e a continental, de paulatina libertação das metrópoles, que comportava uma construção, uma estruturação completa, iniciada quase do nada, tanto política, quanto económica e jurídica (se comparadas com padrões ocidentais).
Foi tendo como pano de fundo esse contexto conturbado, de emancipação e afirmação políticas, que tomou força, principalmente por volta de 1958, o movimento pan-africano. Este culminou com a adesão da Carta da Organização da Unidade Africana em 1963, quando 32 Estados africanos já eram membros da Organização das Nações Unidas. Hoje em dia são 54 os Estados membros da UA (sucessora da OUA), com a adesão do Sul do Sudão.
A Carta da OUA foi defendida como “uma Carta para a Libertação”, visto que verdadeiras preocupações dos Estados africanos, nela contidas, serem relativas à unidade africana, à não-interferência nos assuntos internos dos países – tomados individualmente -, e à libertação, não só do sistema colonial como também do neocolonial. Esta perspectiva fez com que a Carta da OUA fosse constantemente criticada como sendo nada mais que uma formulação de direitos dos Chefes de Estado, uma institucionalização de um sindicato de Presidentes africanos, cuja tarefa principal seria a normalização das relações de seus “membros feudais”.
A falta de afinidade entre a OUA e os direitos humanos deve ser analisado tanto histórica quanto politicamente. A expressão “Direitos Humanos” não figurava no projecto etíope, de 17 de Maio de 1963, que serviu como base de discussão, e que é preferido em relação ao projecto apresentado por Ghana. O máximo que se conseguiu inserir na Carta da OUA a seguinte cláusula preambular:
“Persuadidos de que a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a cujos princípios reafirmamos nossa adesão, oferecem uma base sólida para uma cooperação pacífica e frutuosa entre nossos Estados”.
A referência feita à Carta das Nações Unidas e à Declaração Universal dos Direitos Humanos, em disposição preambular, teve como escopo não comprometer os Estados membros quanto à observância daqueles direitos, haja vista quedarem-se sob a rubrica de “desejos”, não havendo, pois, obrigação jurídica de os efectivar. Não obstante, a menção feita na Carta constitutiva da OUA aos princípios de instrumentos concentrados em fórum global, na qual não houve participação de grande maioria dos estados africanos, impossibilita todo e qualquer rechaço, por parte dos membros da OUA, dos direitos lá enunciados, sob o argumento de que estes mesmos Estados africanos não participaram na sua elaboração (supra); o que, consequentemente, solidifica o princípio da universidade dos direitos humanos.
As esperanças de respeito aos direitos humanos, baseado na disposição preambular mencionada, não encontraram respaldo na realidade, principalmente em razão dos princípios enunciados do Artigo III da Carta da OUA, que destacam inter alia a não ingerência nos assuntos internos dos Estados e o respeito pela soberania.
Foram precisamente estes dois princípios que fizeram com que os direitos humanos não fossem objecto de discussão por quase duas décadas nos órgãos da OUA. Dessa forma, a OUA manteve-se indiferente frente a constantes e massivas violações de direitos humanos, enfatizando sempre que se tratava de assuntos internos dos Estados em questão, que o princípio da não-interferência era um óbice para qualquer acção por parte da Organização, e que a OUA não era um tribunal que pudesse julgar seus membros por suas políticas internas.
A importância dada aos princípios da soberania e da não interferência revela que na prática da OUA houve constante ausência de interesse por parte da maioria dos governos africanos em seu conjunto ou individualidade com vistas a assegurar o efectivo respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Na verdade, ao se abrigarem sob o princípio da não-interferência nos assuntos domésticos dos outros Estados, os governos africanos não observavam o princípio básico de responsabilidade colectiva que existe no campo da protecção dos direitos humanos.
Este tipo de atitude por parte dos Estados africanos começou a entrar em contradição com os próprios objetivos da OUA. Isto porque os direitos humanos, que eram utilizados como o ponto de reivindicação para a luta contra o colonialismo e o apartheid, quando violados pelos Estados membros da OUA não encontraram protecção – podendo-se considerar como única excepção a tutela do direito à autodeterminação.
A frequência com que estas contradições ocorriam era preocupante. Os líderes africanos usavam o slogan “Respeito pela dignidade humana” para fortalecer a luta pela independência, mas esqueciam-se desse dado logo que assumiam o poder.
A década de setenta testemunhou violações condenadas por governos de países de distintos continentes, como a expulsão do Uganda, pelo General Idi Amim Dada, de britânicos de origem asiática, ou então a expulsão do Gabão, pelo Presidente Omar Bongo, de cidadãos de Benin. Apesar da reprovação da comunidade internacional, a OUA não se manifestou em nenhum destes episódios – o que, naturalmente, teve como resultado uma gradual neutralização de qualquer simpatia que existisse com relação a causas como o anti-racismo e anti-colonialismo -, tendo sempre como motivo para este procedimento o respeito pelo princípio da não-interferência.
Apesar do extremado sentimento de ciúmes por parte dos governos africanos com relação à sua soberania – então recém-adquirida – alguns acontecimentos, tanto de ordem interna quanto externa, ensejaram uma séria reflexão e avaliação do seu papel – assim como do princípio da não-interferência – no contexto político africano. Internamente, afora as próprias violações cometidas pelos Estados, que por si só já chamavam a atenção mundial, teve fundamental importância a queda, em 1978, de três ditaduras; quais sejam, a do Imperador Jean Bokassa, da República Centro-Africana, a do Presidente Nguéma Macias, da Guiné Equatorial, e a do General Idi Amin Dada, do Uganda. Como factor externo deveras importante, teve-se a “cruzada pelos direitos humanos” iniciada, em 1979, pelo então Presidente Jimmy Carter, como parte da política externa norte-americana. Os Estados Unidos, assim como diversos países ocidentais, começaram a condicionar seus programas de assistência ao efectivo respeito dos direitos humanos nos países beneficiários. Ainda em nível externo, as Nações Unidas tiveram papel sobremaneira importante, principalmente através da promoção de eventos que chamaram a atenção para a necessidade de se concertar um sistema regional próprio para a protecção dos direitos humanos em África.
Estes acontecimentos levaram os Estados africanos à ponderada conclusão de que somente com a erosão (pelo menos parcial) do princípio da não-interferência e soberania é que se tornaria viável falar-se de um eficaz sistema de promoção e protecção de direitos humanos.
Foram estas as principais barreiras superadas, no contexto da OUA, para o surgimento da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
C) A Organização da Unidade Africana e a Exegese da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
Evento de suma importância na história da OUA, e igualmente na da protecção dos direitos humanos, a Conferência de Lagos, Nigéria, de 1961, deve ser destacada principalmente pelo carácter precursor. Desta Conferência, na qual participaram 194 países, advogados e professores de Direito de 23 países africanos, assim como de 9 países de fora do continente, uma das declarações de maior importância é a que afirma:
“b) que, com o objectivo de dar total efeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, esta Conferência convida os governos africanos a estudarem a possibilidade de se adoptar uma Convenção Africana de Direitos Humanos, de tal sorte que as Conclusões desta conferência sejam salvaguardadas pela criação de uma Corte de jurisdição apropriada, à qual todas as pessoas sob a jurisdição dos países signatários terão recursos”.
 
Só após duas décadas é que se implementou, apesar de parcialmente, este dispositivo.
Em Maio de 1963, na Conferência dos Chefes de Estado e de Governo Africanos, quando trinta Estados Africanos assinavam a Carta constitutiva da OUA, a proposta de uma Convenção Africana de Direitos Humanos foi novamente discutida. Entretanto, os governos africanos preferiram desviar seus esforços para outros assuntos, considerados prioritários”.
Da institucionalização da OUA até a segunda metade de década de setenta, todas as moções dirigidas com vistas à protecção dos direitos humanos ficaram restritas a seminários, conferências, simpósios, haja vista os princípios da não-interferência e da soberania obstaculizarem toda e qualquer tentativa de operalização protectora. O pensamento de vários intelectuais era o de que mesmo estes eventos de cunho académico não geravam os resultados positivos esperados, tornando-se pouco provável uma mudança de perspectivas – prevalecia, pois, o pessimismo.
Não obstante, em 1978, uma Revolução movida pela Nigéria foi adoptada na Sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, cujo escopo era precisamente requerer às Nações Unidas assistência para o estabelecimento de instituições regionais de direitos humanos.
Após quase um ano, durante a 16ª Conferência dos Chefes de Estado e de Governo Africanos, realizada em Monrávia, Libéria, de 17 a 20 de julho de 1979, o Presidente Leopold Sedar Senghor, do Senegal, propôs uma Resolução que levou à Decisão 115/XVI (1979). Esta versava sobre a preposição de um esboço preliminar, por um grupo de peritos, de uma Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, a qual vislumbraria, inter alia, o estabelecimento de órgãos para a promoção e protecção destes direitos.
Logo em seguida, entre 10 e 21 de Setembro de 1979, a pedido da Assembleia Geral e da Comissão de Direitos Humanos da ONU, e a convite do governo da Libéria, o Secretário-Geral das Nações Unidas organizou em Monróvia um seminário sobre o estabelecimento de comissões de direitos humanos, com especial referência à África. Uma de suas mais importantes conclusões sustenta que o princípio da não-interferência nos assuntos internos de um Estado soberano não deveria excluir a acção internacional quando da violação dos direitos humanos. Não obstante, considerou-se que a função principal da Comissão Africana de Direitos Humanos deveria ser primariamente promocional, posto que se constituiria na informação à população dos seus direitos.
Foi em Dakar, de 28 de Novembro a 8 de Dezembro de 1979, que o grupo de peritos, mencionados na Decisão 115/XVI (1979), se reuniu com o objectivo de preparar um esboço preliminar da Carta Africana. Eles se surpreenderam ao se deparar com um esboço preliminar da Carta Africana pelo Secretariado da OUA, o qual era bastante semelhante com os dispositivos das Convenções Europeias e Americana de Direitos Humanos. Ao rever a situação, a Consultoria Jurídica da OUA e o grupo de peritos chegaram à conclusão que a OUA necessita de um instrumento de direitos humanos diferente e especial, o qual lidasse especificamente com problemas africanos: devendo então ser dada ênfase aos direitos dos povos, aos deveres dos indivíduos, ao órgão que promoveria e protegeria os direitos constantes na Carta, à criação de obrigações pertinentes à segurança do Estado, e aos métodos de aplicação dos dispositivos da Carta. Outros factores que influenciam na relação da Carta foram inter alia a necessidade de se dar importância ao princípio da não-discriminação, de se enfatizar os princípios e objetivos da OUA, de se mostrar que a moral e os valores africanos ainda têm significância na sociedade africana, assim como de se dar o merecido destaque aos direitos económicos, sociais e culturais.
Uma vez concluído o esboço preliminar da Carta Africana, o Secretário-Geral da OUA convocou uma reunião ministerial para aprová-la. Esta realizou-se em Banjul, Gâmbia, de 9 a 15 de Junho de 1980. Neste período apenas 11 artigos foram revistos e adoptados. Isto se deu, como bem explica Emmanuel G. Bello, em função de dificuldades mormente psicológicas, podendo-se mencionar a falta de consenso, entre as delegações, no que tangia à conceituação política de direitos humanos; a atmosfera de suspeita entre as delegações; e a postura cautelosa, que preferia manter o status quo e não avançar progressivamente.
Frente ao relativo fracasso desta primeira reunião ministerial, outra foi convocada para se realizar entre 7 e 19 de Janeiro de 1981, também em Banjul. Quarenta dos então 50 Estados membros da OUA participaram nesta segunda reunião, quando todos os artigos remanescentes foram revistos e aprovados.
A 18ª Conferência dos Chefes de Estado e Governo da OUA, realizada de 17 a 26 de Junho de 1981 em Nairobi, Quénia, procedeu à aprovação da Carta Africana, que a partir de então ficou aberta à assinatura, adesão e ratificação dos Estados membros da OUA.

Os instrumentos e instituições de protecção dos direitos humanos em Africa
 
Segundo MARIA JOSÉ MORAIS PIRES, in CARTA AFRICANA DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS
(disponivel em http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/ua_pires_carta_africana_direitos_povos.pdf),

A Carta Africana constitui naturalmente um contributo importante para o desenvolvimento do direito regional africano e preenche uma lacuna em matéria de protecção dos direitos do homem. Trata-se de um progresso significativo, resultante de um compromisso entre as concepções políticas e jurídicas opostas, que veio trazer ao direito internacional dos direitos do homem a consagração de uma relação dialéctica entre direitos e deveres, por um lado, e a enunciação tanto de direitos do homem como de direitos dos povos, por outro. As tradições históricas e os valores da civilização africana influenciaram os Estados autores da Carta, a qual traduz, pelo menos no plano dos princípios, uma especificidade africana do significado dos direitos do homem. Uma outra inovação que merece relevo, consubstancia-se na ausência de distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e económicos por outro, o que constitui aliás a consagração da mais recente doutrina do direito internacional dos direitos do homem. A Carta não distingue a natureza dos direitos, atribui-lhes igual força jurídica e submete-os todos à “jurisdição”, ou melhor, ao controlo da Comissão Africana dos Direitos do Homem. Assim, em teoria, a Comissão poderá ser chamada a apreciar a actividade dos Estados em matéria de acções destinadas a assegurar o exercício dos direitos económicos e sociais.
A enunciação dos deveres revela-se também uma das originalidades da Carta de Banjul. A referência aos deveres tinha já surgido num instrumento jurídico não vinculativo – a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 – mas a Carta Africana revela-se o único tratado relativo a direitos do homem que consagra, de forma desenvolvida, a noção de deveres individuais não só em relação ao próximo, mas também em função da comunidade, na linha da tradição africana. Este entendimento constitui uma “ruptura” com a concepção ocidental dos direitos do homem, que considera à luz da doutrina positivista, a dialéctica direito-dever essencialmente baseada no direito como um conjunto de prerrogativas, que originam por reciprocidade um feixe de deveres ou obrigações. A “autonomização” dos deveres altera a natureza deste conceito, embora não seja possível afirmar que a Carta estabelece uma relação hierárquica entre direitos e deveres, nem tão-pouco uma precedência dos direitos sobre os deveres. Determina apenas – com alguma imprecisão – o conteúdo dos deveres, bem como os seus beneficiários. Com efeito, a Carta impõe várias obrigações ao indivíduo em relação à comunidade, as quais não decorrem de um “direito subjectivo”, no sentido kelseniano, pois constituem verdadeiras obrigações autónomas, sem paralelo em outros instrumentos de direito internacional de direitos do homem.
Para além das inovações trazidas pela Carta Africana, importa ainda assinalar algumas lacunas de natureza técnico-jurídica, do seu articulado.
Assim, a definição imprecisa dos direitos e a sua enunciação de forma ambígua e insuficiente, bem como a ausência de limitações específicas, ou melhor, a formulação de limitações que protegem o Estado, em detrimento do indivíduo, reduzem o conteúdo dos direitos, por vezes abaixo do nível mínimo exigido pelo direito internacional dos direitos do homem 6. É certo, que no artigo 27.º, n.º 2, surge, incluída no capítulo dos deveres, o que se poderá designar de “cláusula geral de limitação” 7, aplicável genericamente a todos os direitos. Assim, os direitos e liberdades exercem-se no “respeito dos direitos de outrem, da segurança colectiva, da moral e do interesse comum”. Para além de uma objecção de natureza sistemática – a sua inclusão no capítulo dos deveres – a imprecisão dos conceitos, deixa ao Estado uma larga margem de apreciação, dado que será sempre possível encontrar um fim legítimo para justificar uma ingerência nos direitos e liberdades dos indivíduos. Caberá naturalmente à Comissão delimitar com rigor a aplicação desta norma, de forma a evitar interpretações distorcidas daquele preceito.

Que direitos estão protegidos na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos?
Ao longo do catálogo dos direitos inscritos na Carta Africana transparece a influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sem entrar aqui no debate da sua obrigatoriedade, cabe notar que a técnica jurídica usada, ou seja uma enunciação declarativa, sem excessivas preocupações de limitações e garantias, afigura-se análoga ao texto de 1948. Por outro lado, como é conhecido, o sistema dos Pactos das Nações Unidas, prevê dois regimes diferenciados consoante a natureza dos direitos, designadamente nos meios de garantia, sendo que o Pacto relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais apenas exige uma execução progressiva das acções necessárias ao exercício dos direitos e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos está submetido ao controlo de um órgão para-jurisdicional, o Comité dos Direitos do Homem.
Neste contexto, na Carta de Banjul, a indistinção entre os direitos civis e políticos de natureza perceptiva e os direitos económicos e sociais de natureza programática 16, tanto no que se refere à sistemática, como no respeitante à sujeição à competência da Comissão, revela-se assim muito inovadora. Esta identidade de regimes parece implicar que os Estados partes pretendem assegurar de imediato o exercício de todos os direitos previstos na Carta e, em última análise, sujeitam os Estados à respectiva apreciação pela Comissão.
A concepção individualista dos direitos do homem está naturalmente presente na letra e no espírito das normas da Carta de Banjul, em parte por influência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, apesar da tradição social africana incluir o indivíduo no grupo, num conjunto de relações familiares e étnicas. Por outro lado, a própria ideia de abstenção do Estado inerente aos chamados direitos da “primeira geração” está hoje completamente ultrapassada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência. A exigência de acções do Estado, tanto se verifica nos chamados direitos da “primeira” como da “segunda geração”, o que aliás decorre do espírito da Carta Africana. Os seus autores quiseram claramente ultrapassar a dialéctica marxista, que rejeita os direitos da “primeira geração”, para impor uma relação de interdependência e igualdade entre todos os direitos.
Uma observação que pode desde já ser feita à generalidade dos direitos refere-se às cláusulas de limitações, as quais se revelam imprecisas, remetendo em alguns casos os limites dos direitos para a “lei”, sem que se defina o que se entende por lei. Ora, em regimes de partido único, afigura-se-nos que a lei não tende a proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, mas sim o poder do Estado e das autoridades públicas. A ausência de cláusulas limitativas do tipo europeu, como sejam as limitações necessárias a uma “sociedade democrática” não se encontram nas disposições da Carta de Banjul. Cabe ainda referir brevemente, os princípios gerais de igualdade e não discriminação que se encontram inscritos nos artigos 2.º e 3.º da Carta Africana, os quais, à semelhança dos Pactos e da Convenção Europeia, não são disposições autónomas, só podendo ser invocadas em conjunto com a aplicação de um direito protegido no texto.


A situação dos direitos humanos em África
A situação dos direitos humanos na África é, em geral considerada preocupante, de acordo com observadores da ONU, do mundo ocidental e de organizações não-governamentais. Governos democráticos parecem estar a aumentar em África, embora ainda não sejam a maioria A National Geographic declara que 13 das nações africanas podem ser consideradas verdadeiramente democráticas. Muitas nações reconheceram direitos humanos básicos nominalmente para todos os cidadãos, embora na prática esses nem sempre sejam reconhecidos, uma vez que não foram criados poderes judiciários razoavelmente independentes.
Ao se analisar a questão dos direitos humanos, deve-se ter em conta os interesses das grandes potências, e o choque das civilizações. No que concerne aos interesses das grandes potências, basta nos recordarmos que, durante a Guerra Fria, as duas grandes potências (Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) apresentavam retóricas diferentes sobre esse conceito. Por um lado tínhamos os EUA e os seus aliados a defenderem acerradamente os direitos civis e políticos (que caracterizam a democracia liberal), e por outro, a URSS e seus aliados a defenderem os direitos económicos e a justiça social (factos que caracterizam o Socialismo e Marxismo). Se bem que a democracia liberal (comandada) afirma-se ter vencido a Guerra Fria, hoje assiste-se uma corrida desenfreada em se introduzirem itens relativos ao Socialismo ou Marxismo. A título de exemplo, Barack Obama já foi acusado de ter caída pelo Socialismo pela sua luta em introduzir reformas no sistema sanitário dos EUA (confira em http://articles.latimes.com/2008/oct/19/nation/na-campaign19, ou http://prospect.org/article/what-right-wingers-mean-when-they-call-obama-socialist, dentre vários). Ademais, na famosa “Primavera Árabe” reivindicam-se direitos sociais (típicos do socialismo).
No que tange ao choque das civilizações, o politólogo americano Samuel Huntington afirmara que, após a Guerra Fria, a relativa vitória democrático-liberal e a vontade de expansionismo encontraria obstáculos ou conluios com algumas culturas como a chinesa, a latina, a budista, a hindu, a muçulmana e a africana.
Esse facto é visível na interpretação dos direitos humanos na contemporaneidade. Os direitos humanos definidos na óptica ocidental não são convergentes à óptica muçulmana, chinesa, budista, muito menos aos moldes patrimonialistas africanos.
A título de exemplo, o sistema internacional convivia com o Prémio Internacional Al-Gaddafi de Direitos Humanos (confira-se em http://www.gaddafiprize.org/English.htm ), para além dos seus nóbeis, entre outros. Entretanto, Qadafi era, aos olhos do ocidente, um vilão e violador dos direitos humanos.

CONCLUSÕES
O artigo trouxe uma resenha sobre o conceito de direitos humanos, assumpções e interpretações a este relacionados. Mas na essência este reflectiu sobre os 25 anos após a entrada em vigor da Carta Africana sobre os Direitos do Homem e dos Povos e os frutos que dela advêm ao nível do continente Africano.
Há melhorias no que tange à abertura democrática no continente Africano. Entrementes, existe desafios no que concerne às ideologias, crenças e culturas locais em relação aos ideais importados ou vigentes no mundo ocidental – é o chamado choque das civilizações. O problema se agrava se se tiver em conta que África em si não é monolítica, ou seja, os seus países não convergem em termos culturais, políticos, ideológicos, entre outros. Esse devia ser o primeiro passo – que se encontrasse um meio termo de uniformizar, pelo menos os modelos políticos, económicos – para que a interpretação do conceito de direitos humanos não fosse ambígua. E como dizem os nossos provérbios, “sempre há certeza de amanha será um outro dia!”

BIBLIOGRAFIA
Huntington, Samuel P., The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, New York, Simon & Schuster, 1996.
Protocol to the African Charter on the establishment of the African Court on Human and Peoples’ Rights (1998) in Botha N 2 International Human Rights Law Study Guide (UNISA, 2005)
SERAC & Anor V. FRN (2002) 2 CHR 537 - African Commission on Human and Peoples' Rights, Banjul Gambia, 30th Ordinary Session 13th - 27th October 2001.
Tiawan S. Gongloe - "Politics and Good Governance with Emphasis on Democracy, Human Rights and Ethics and National Integration in Africa." - The Perspective, Atlanta Georgia, November 5, 2002.
Wahiu W in The African Human Rights System: Towards the Co-Existence of the African Commission on Human and Peoples’ Rights and the African Court on Human and Peoples’ Rights (2006).

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